
Desrepresamento: o maior desafio da cadeia nacional de saúde
“A boa notícia é que estamos aterrissando. A má notícia é que você é o piloto”, explica um meme popular nos dias de hoje. Está começando uma insólita descida aos ‘tempos normais’. Mundo afora, o coronavírus dá seus primeiros sinais de fastio. Não significa que o derrotamos, mas que ele está se entediando com humanos. Afinal, o patógeno esperava que as vacinas demorassem mais tempo a surgir, que os homens se enfadassem mais cedo com os lockdowns e que Trump fosse reeleito. Não rolou, e o vírus não gosta de ser contrariado. Acontece que para muitos é agora que começa o “surto enrustido”, aquele que pode demorar anos para desaparecer: o ‘desaguar’ de bilhões de tratamentos clínicos que ao longo dos últimos 18 meses ficaram represados. É possível que o mundo demore mais de uma década para equilibrar as demandas sanitárias reprimidas pelo isolamento social e pelo risco de contaminação da Covid-19. Mais do que isso: talvez seja necessário ‘reinventar os sistemas de saúde’ para absorver o volume retido de procedimentos, como também para nos capacitar à próxima epidemia. Por outro lado, se tínhamos dúvidas sobre o que é “globalização”, elas desaparecem, a civilização está tendo que engolir um 11º. Mandamento: “quando não cuidares de ti e dos teus, não cuidará de todos”.
Em meados de 2020, mais de 41% dos adultos norte-americanos adiaram o atendimento médico ou o evitaram totalmente, incluindo serviços emergenciais, exames preventivos, tratamento de câncer e avaliações cardiovasculares. Esse represamento vem se propagando pelo mundo mais do que o próprio coronavírus. A última ‘pulse survey’ da OMS, realizada com 135 nações e publicada em abril último, mostrou que o Sars-CoV-2 continua a interromper severamente a prestação dos serviços de saúde. Trata-se da maior ‘represadura-clínico-assistencial’ da era moderna. De acordo com estudo da CovidSurg Collaborative, cerca de 28,4 milhões de cirurgias eletivas foram canceladas somente na primeira onda da Covid-19. O impacto pandêmico sobre os serviços essenciais das nações populosas é devastador, sendo provável que elas precisarão de anos para equilibrar minimamente as demandas. Considera-se que tenha havido no mundo, até o final de 2020, uma redução de 70% nos serviços de imunização de rotina; 69% nos serviços de diagnóstico e tratamento de doenças não transmissíveis e 61% no tratamento de doenças mentais. A paralização no diagnóstico e tratamento de câncer, por exemplo, chegou a 55% mundialmente (no Reino Unido, estima-se que só nessa fase houve mais de 3.500 mortes evitáveis de câncer, ou ‘60 mil anos de vida perdidos’).
No Brasil, o problema da interrupção assistencial começa agora a mostrar seus números: “Estimamos que os procedimentos não realizados devam chegar a 1,6 bilhão neste ano, já que o cenário da Covid-19 se agravou nos primeiros meses de 2021″, explicou Mauro Junqueira, secretário-executivo do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde). Tecnicamente, a entidade contabilizava até o final de 2020 mais de 1,1 bilhão de procedimentos clínicos adiados ou cancelados somente na rede pública. Só a cidade de São Paulo tem uma fila de 130 mil pacientes a espera de cirurgias seletivas e mais de 350 mil esperando por consultas com especialistas (fonte: Conass, julho 2021). Assim, enquanto a imunização vacinal cresce e os casos tendem a se estabilizar, espera-se uma torrente de milhões de pacientes voltando aos consultórios, centros cirúrgicos, laboratórios de diagnóstico e aos procedimentos terapêuticos. Essa ‘carteira assistencial reprimida’ chega num momento em que a comunidade médica está absolutamente esgotada, aflita e desanimada. Cada player da cadeia de saúde será piloto dessa gigantesca “arca-de-noé” de procedimentos acumulados. Tem de tudo nela: de crianças a idosos, de pobres a ricos, de urbanos a rurais.
Uma das condicionantes mais críticas para reduzir o impacto desse imenso ‘desembocar de atendimentos’ são as tecnologias digitais. A pandemia acelerou várias megatendências e transformações, como, por exemplo, a digitalização, mas é nesse grave momento que digital health pode mostrar a sua força. A OCDE, em seu paper “Upscaling the Use of Digital Tools in Regions and Cities”, mostra que nessa fase de represamento é necessário contar com ‘abordagens digitais para diferentes horizontes de tempo’. Nesse contexto, ela preconiza que os healthcare providers utilizem um sequenciamento temporal para a incorporação digital, como, por exemplo: (1) reagir no curto prazo: prover comunicação bidirecional por meio de plataformas digitais que permitam reações ágeis aos contenciosos emergenciais (virtual-consultation, por exemplo), principalmente nos processos de triagem e agendamento; (2) resolver no médio prazo: atualizar os serviços digitais para (a) integrar o paciente às redes assistenciais parceiras, (b) ‘remotelizar’ os serviços médicos, e, acima de tudo, (c) suportar digitalmente a comunidade médica a prover assertividade e agilidade diagnóstica (EHR, Telemedicina, Telediagnóstico, etc.); e (3) reinventar-se no longo prazo: expandir a transformação digital produzindo novas propostas de medicina preventiva e preditiva, priorizando (a) máquinas inteligentes de deep learning, (b) a integração de todas as passagens e desfechos clínicos aos mecanismos de health analytics; e (c) as práticas de fomento ao autocuidado, instituindo health literacyem todos os níveis da educação fundamental (lembrando: ‘alfabetizar o paciente em saudabilidade’ não é só um dever do Estado, mas também do setor privado, que só conseguirá sustentação de longo prazo com uma inequívoca participação do beneficiário).
Em todas as alçadas de recomposição dos procedimentos suspensos, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, emerge um elemento decisivo: remotelização. É a Saúde Conectada que deverá suportar decisivamente os esforços de redução dos atendimentos represados. Estudo da Juniper Research, publicado agora em agosto, mostra que o número de consultas-virtuais realizadas globalmente chegará a 765 milhões em 2025, passando facilmente dos 422 milhões de 2021, o que representa um crescimento de 80%. Ou seja, em média, um paciente em qualquer parte do mundo usará serviços de consulta on-line 3,6 vezes ao ano. Embora essa projeção leve em consideração a expansão dos serviços de 5G, trata-se de um número fascinante, principalmente se considerarmos que até 2030 o mundo terá um déficit de 18 milhões de profissionais de saúde (fonte: OMS).
Um magistral relatório da britânica Academy of Medical Sciences, publicado em julho último (“COVID-19: Preparing for the future”), relata detalhadamente em 130 páginas os percalços dos próximos anos frente a desova dos tratamentos médicos represados, não só no Reino Unido como em todo o Ocidente. “A pausa da maioria dos tratamentos ambulatoriais e internações eletivas durante a pandemia levou a um acúmulo de cuidados que alcançam uma espera no Reino Unido de 5,1 milhões de pessoas. Os serviços de saúde enfrentam um desafio mundial sem precedentes, tendo que lidar ao mesmo tempo com a Covid-19 e com os demais serviços médicos drenados. Para resolver essa demanda reprimida, estima-se que a atividade clínica ambulatorial precisaria aumentar para muito além dos níveis pré-pandêmicos e permanecer crescente por muitos anos. A BMA (British Medical Association) enfatiza que se houvesse um aumento de 110% nos níveis de atenção pré-Covid-19 poderíamos levar até cinco anos para reduzir o acúmulo de cuidados eletivos represados”. Serão tempos difíceis, duros e dramáticos para boa parte da população mundial. Mas serão mais duros para países como o Brasil, cujo principal piloto da saúde é o Estado, que precisa urgentemente redimensionar seu orçamento sanitário. É no SUS e para o SUS que a pandemia mostrou a sua face mais perversa, e continuará assim, mesmo quando o coronavírus já não estiver mais entre nós.
fonte: 1 bilhão de procedimentos clínicos represados: começa o escoamento (saudebusiness.